Um conto

                


              Saudade melodiosa


  Saudade… É uma dor esfaimada que cerceia o peito e rouba o ar, enquanto a mente troça. São pedras de brilho cintilante que a memória recolhe da beira do caminho e lança no vidro espelhado que reflecte o instante, mas não o quebra. Balança apenas. Dentro dessa redoma de vidro, está guardado o Ser que pensa, lembra, chora, mas cresce a cada lágrima que corre, onde o presente se abisma e o futuro lhe toma o nome.
   Dói demais lembrar.
   Sento-me, porque pesa tanto e as pernas não suportam. Quanto tempo passou afinal? Nada faz sentido, porque em certos dias, o que parece ter acontecido à tempo demais, em outros faz-me julgar ter sido ontem; às vezes penso que nem aconteceu e tudo foi apenas um sonho mau. Mas todos os fins de tarde, quando o Sol lentamente imerge no horizonte e os pássaros esvoaçam em bando, loucos e apressados fugindo da noite, podemos ouvir o som mavioso de uma flauta, entoando por instantes, admiráveis melodias que fazem desejar que o momento se torne eterno. Já ninguém pergunta nem se assusta, já ninguém tem curiosidade na origem desse som, porque todos sabem que o canto dessa flauta, tão puro como o chilrear de um pintassilgo pela manhã, vem do céu, vem da brisa que oscila as folhas das árvores numa dança perfeita, vem do cheiro doce das uvas maduras, das lágrimas em forma de chuva pingando na água do poço. Esse som vem do fundo lado esquerdo do peito, onde o Amor se imortaliza.


                                   Era uma vez...


   – Tenho algo muito importante para te contar – disse a Mariana com um ar radiante.
   – Conta mulher, assim deixas-me nervoso! – exclamou Rodrigo, meio desconfiado.
   – Estou grávida!
  Rodrigo não queria acreditar, ia ser pai pela primeira vez. Esperava aquele momento desde o dia que casou com Mariana e vieram viver para a quinta, mas tinham passado quinze anos, e quando ambos se haviam conformado com a ideia que não conseguiam ter filhos, eis que chegou a boa notícia. Rodrigo era enólogo e tinha recebido de herança, aquela propriedade, quando o seu avô faleceu. O seu querido avô espanhol, que se chamava Estebán e que um dia, para não morrer de desgosto de amor, fugiu para Portugal, adquiriu umas quantas vinhas no Alentejo e dedicou-se a produzir alguns dos melhores vinhos da região. Rodrigo deu com orgulho, continuidade ao projecto do seu avô, passava então a maior parte do tempo por ali, tomando conta atentamente do crescimento das uvas e de todo o processo que lhe seguia. Nas horas vagas gostava de trabalhar com madeira. Esculpia belas peças decorativas, torneava objectos com a minúcia de um artista, que posteriormente oferecia aos amigos.
   – Vai-se chamar Estebán como o meu avô!
   – E se for uma menina? – perguntou a Mariana.
  – Vai ser um rapaz, tenho a certeza – exclamou com toda a confiança, depois soltou uma gargalhada e prosseguiu. – Vai ter olfacto e paladar mais apurados que o pai e o bisavô juntos.
   Assim foi, no dia 15 de Setembro de 1998, nasceu Estebán, um menino saudável que veio trazer uma nova energia à herdade e às pessoas que ali viviam e trabalhavam. Uns dias antes, o seu pai tinha colocado uma bolota entre guardanapos humedecidos, pare que germinasse e a pudesse colocar na terra quando o menino nascesse. Quando aquele jovem promissor veio ao Mundo, brotou com a mesma força e energia, na quinta, um gracioso carvalho que seria seu companheiro para a vida.


   Rodrigo e Mariana eram então o casal mais feliz, tinham tudo o que desejavam e talvez por não serem propriamente muitos jovens, ou quem sabe por se sentirem gratos pela bênção que tinham recebido, cuidavam e educavam aquela criança com todo o zelo e paciência que se pode imaginar. Estebán foi crescendo no meio da Natureza, e quando começou a andar, corria pelo seu próprio pé, com o espírito de quem é livre, explorando as imediações da quinta, num conjunto de brincadeiras e aventuras que por vezes se prolongavam até ao escurecer. Nunca foi de muitas palavras, mas a sua curiosidade transbordava por detrás dos seus enormes e atentos olhos cor de avelã e a sua simpatia cativava toda a gente, de maneira que nem Mariana nem o marido se preocupavam muito, afinal sabiam que por onde andasse, havia sempre quem lhe desse um olhinho.

   Um dia o pai explicou ao pequeno Estebán, que aquela jovem árvore era um carvalho e que tinha crescido de uma simples bolota.
   – Tem precisamente a tua idade. Ambos vieram ao Mundo no mesmo dia, praticamente à seis anos atrás.
   – O que é vir ao Mundo? – e antes que o pai lhe pudesse responder, fez outra pergunta – As árvores falam?
   – Não filho, as árvores não falam, mas escutam. São os nossos amigos confidentes, capazes de ouvir atentamente e guardar os nossos segredos. Vivem muitos mais anos do que qualquer Ser Humano, e absorvem todas as histórias e confidências que vão ouvindo ao longo desses anos. As grandes e velhas, têm muita sabedoria!
   – E esta, pai, vai crescer mais?
   – Vai crescer muito mais que tu, mas vai ter sempre a tua idade.
   A partir daí, Estebán percebeu o significado prático da palavra Amizade. Aprendeu que não precisamos ser iguais para podermos ser amigos e que esse sentimento puro que flui, tão simplesmente como a Natureza que acontece, não se detém em fronteiras que se erguem de preconceito pelo cérebro. Visitava todos os dias o franzino carvalho e contava-lhe as aventuras que iam para além do seu alcance, falava-lhe como as uvas estavam crescidas e saborosas, que tinham nascido novos cães na quinta e que quando fossem um pouco maiores que os traria ali. Conversava como se fosse um diálogo, do qual parecia sempre esperar uma opinião interveniente que não vinha, ou que talvez viesse, de uma forma que não se possa ouvir. Mostrava uma ansiedade imensa em querer contar tudo o que via longe dali, no fundo tentava ser os olhos e as pernas que o amigo não possuía.


   Quando parecia estar tudo bem, e todos andavam atarefados na colheita das uvas, sucedeu a primeira de algumas tristezas que aconteceram na herdade. Não sei o que se passou na cabeça de Estebán, e nesse dia, levantou-se cedo como de costume, dirigiu-se à arrecadação onde estavam guardadas as máquinas e algumas ferramentas; pegou num serrote e num passo de corrida em que ninguém o viu, foi até ao extremo da propriedade onde estava o seu inocente amigo chamado carvalho e com uma inocência parecida, cortou-o. Tenho a certeza que o fez sem qualquer maldade. Não teve noção que lhe tirara a vida, até porque as suas intenções tinham sido as melhores. Queria apenas mostrar à pequena árvore como eram na realidade as coisas de que lhe costumava falar e trazê-la quem sabe, para junto de casa, onde pudessem ficar mais perto.
   A primeira reacção de Rodrigo, foi jogar as mãos à cabeça quando viu o filho suado, num enorme esforço, com toda a sua força puxando aquele pedaço de madeira esguio e comprido. Mostrou-se zangado embora por dentro risse, por achar que aquela seria uma das histórias que as famílias tão carinhosamente guardam, para uns anos depois recordarem e rirem, nas memórias que se vão soltando durante aqueles almoços prolongados de domingo. Explicou então a Estebán que as árvores têm raízes que as ligam à terra, que é também por onde se alimentam e que separadas delas, não conseguem viver. Quando viu o rapaz choroso, disse-lhe que não ficasse triste, ia tentar arranjar uma solução. Aquela árvore já não ia poder crescer, no entanto, a madeira só perde a vida de vez quando vira cinza numa fogueira qualquer. Mandou-o então para casa para poder tranquilamente dar sumiço ao tronco, na esperança que alguns dias depois, o assunto caísse no esquecimento. Mas Estebán não se esqueceu facilmente, em vez disso, abraçou um sentimento de culpa, em que os seus olhos perderam de certa forma algum brilho e já não expressavam a curiosidade que lhes era tão característica. Afinal havia estragado a sua primeira amizade.
   É duro ver um filho triste e Rodrigo, cansado dessa situação e farto de puxar pela cabeça, tem a brilhante ideia de construir uma flauta. Sim, uma bela flauta de madeira de carvalho. Que melhor ideia poderia ter? Em pouco tempo iria devolver o amiguinho a Estebán, agora numa versão bastante melhorada, e que este, com a maior das facilidades poderia transportar para onde quisesse. A mesma essência, a mesma matéria, apenas numa forma diferente, com a vantajosa particularidade que iria ganhar voz, um sublime canto de flauta doce, afinada em dó. Assim que a madeira secou o suficiente para que pudesse ser trabalhada sem correr o risco de estalar mais tarde, Rodrigo meteu mãos à obra; todos os dias, dedicava algumas horas na sua elaboração, até aquele pedaço de madeira se transformar numa peça de arte, quase perfeita, capaz de fazer inveja a qualquer empenhado coleccionador de instrumentos de sopro.


   Depois de almoço Estebán pegou na bicicleta e vadiou pela quinta. Houve um cachorro, que tinha nascido a alguns meses numa ninhada de rafeiros, que o seguiu. Já era costume fazê-lo, diria mesmo que andavam a conquistar a amizade um do outro, cumprindo todos os rituais e brincadeiras que isso implica. Quando chegou junto de um poço que havia para dar apoio na rega, desmontou da bicicleta e aproximou-se. Tinha sido avisado que era perigoso, ainda assim, tentou tirar água com um balde preso por uma corda. O cão estava agitado com a folia e ladrava, no meio da euforia, empoleira-se no poço e tomba para o seu interior. Tinha chovido bem naquele inverno e o poço estava cheio, a água estava próxima do topo, mas não tão próxima assim que o miúdo conseguisse esticar o braço e tirar o pobre animal para fora. Estebán já tinha perdido um amigo, não iria perder outro e, numa aflição que não o deixava pensar, debruçou-se de tal forma que foi parar dentro de água também. Os seus braços agitavam-se como que procurando algo onde se pudesse agarrar, denotando pânico absoluto, um medo gigante que o fez imergir e desaparecer por largos minutos. Depois voltou à tona, sem vida.
   Rodrigo terminou de fazer a flauta de madeira nessa tarde, por coincidência, ou porque o destino adora gozar com a cara das pessoas, saiu à procura do filho. Não tinha dado pela falta do pequeno, nem sequer desconfiava que alguma coisa pudesse ter acontecido. Avistou a bicicleta próximo do poço, chamou por Estebán ainda de longe e apenas recebeu de volta o eco da sua voz. O seu coração acelerou o ritmo numa brusquidão estranha que lhe fez perceber que algo estava errado. Correu, olhou para dento do poço, a flauta que levava na mão, escorregou-lhe por entre os dedos enquanto centenas de imagens lhe passaram na cabeça a uma velocidade estonteante. O cachorro, ainda vivo e completamente enregelado, gania num timbre agudo que já mal se conseguia ouvir, tinha encontrado no corpo de Estebán, a sua verdadeira tábua de salvação.
   O destino foi demasiado cruel, invertendo o ciclo normal da vida, e quando assim é, faz-nos perder a coragem de seguir em frente, desacreditamos em todos, incluindo em nós mesmos, julgando-nos incapazes de lutar até por um pedaço de oxigénio que seja, como se uma espada nos fosse cravada de surpresa nas costas, perfurando os pulmões. Não há reacção, nem sequer há chão… É a apatia que tem o papel de anestesiar o bruto impacto. Depois esse efeito minimiza lentamente, então, a raiva e a revolta surgem para preencher o vazio, trazem uma robustez decidida a corroer por dentro, como se fosse um grupo de hienas em volta de uma presa putrefacta, abocanhando e resgatando partes. É achar que não temos nada a perder, quando de facto, não temos mesmo nada a perder.


   Há quem diga que na quinta, em todos os finais de tarde, podemos ouvir o som de uma flauta. Que o espaço recupera por instantes a cor que havia perdido e uma energia leve, invade o ambiente, transmitindo uma sensação de paz capaz de transportar as emoções de quem escuta para uma dimensão mais transparente. Quem tocará essa flauta? Os dedos da imaginação, a saudade… Uma energia? Para mim é Estebán, aquele menino que viveu tão pouco, mas que ainda assim teve tempo suficiente para descobrir um dos bens mais preciosos, a Amizade. Alguém que arriscou e deu a sua vida por um amigo.

   Amizade é isso mesmo, é não ter limite para dar, nem receber. É dizer, escutar, calar… E nunca querer que os outros sejam como nós, mas sim aceitá-los tal como são.