A velha fotografia de Carnaval


 Estava um domingo maravilhoso, daqueles em que a Primavera, timidamente se vai querendo mostrar, e resolve contemplar-nos com um Sol simpático que aquece os ossos e a alma, rompendo os dias de Inverno que restam. Há um jardim perto, de uma dimensão que a vista não alcança o fim e que possui tudo para proporcionar um momento feliz nas nossas vidas, tornando-se tão apelativo em dias como este. Ali o Homem aliou-se à Natureza e engrandeceu-a com um toque pessoal que não danifica. Fez-lhe lagos, misturou arte no verde e tornou acessíveis os caminhos de onde se pode observar e absorver tudo o que magicamente acontece à volta. 
  
   Muita gente passeia, mas é uma família que ali se encontra, representada por três gerações, que vai ser protagonista desta história. Três gerações são suficientes para nos mostrar que com os tempos se mudam as vontades e a cada idade se tem uma percepção diferente da realidade, e uma forma peculiar de estar e aspirar a vida.

   O avô e a avó, um filho e uma nora, e três netos, todos rapazes. 

 Com os mais pequenos tudo flui normalmente, não observam muito, pormenores não existem e sem saberem explicar muito bem, nem se preocuparem com isso sequer, sentem-se felizes. Recebem toda aquela energia e gastam-na em correrias soltas e brincadeiras que inventam, sem nunca se cansarem. 

   A avó, caminha com um sorriso rasgado, enche os pulmões daquele ar puro com sucessivas e profundas inspirações e colhe com ternura pequenas flores que encontra. A nora acompanha-a, trocam palavras por vezes mas esta parece estar mais preocupada com tudo. Zela pelo conforto da sua querida sogra, dá uma olhadela aos miúdos, espreita o sogro, o marido, e não se consegue abstrair de modo algum. 

   O avô,  é tão diferente. Ele caminha à frente de todos até um banco de pedra e senta-se, porque as suas pernas já não são as mesmas de antes, mas o que o diabo lhe roubou fisicamente, Deus devolveu-lhe em sabedoria. Fecha os olhos, escuta os pássaros e reconhece-os, está atento a tudo o que se passa, embora seja discreto. Na sua cabeça passam memórias e pensa, afinal agora que sabe tanto da vida, já lhe sobra tão pouco tempo dela. Então aproveita um dia de cada vez, cada minuto, cada segundo, como se no dia seguinte já cá não estivesse. O seu filho empunha uma magnífica máquina fotográfica, e mais parece uma criança exibindo o presente que recebeu no Natal. Dispara em todas as direcções, capta o lago, os patos, as árvores, as estátuas, as costas das estátuas, as crianças e as flores. É impossível comunicar com ele, não escuta ninguém de tão compenetrado que está, intencionando captar todos os momentos daquela tarde. Acaba por se afastar de toda a gente e em hora e meia, já tinha trezentas imagens registadas. 

   De regresso a casa, as mulheres dirigem-se à cozinha, com intenção de preparar algo para o jantar enquanto as crianças se entretêm a ver televisão. O homem idoso vai buscar uma caixa de cartão, onde guarda algumas recordações, retira do seu interior uma foto e aproveita para conversar com o seu filho.


     – Sabes o que é?
    – A velha fotografia de Carnaval! – exclamou. – Aquela que o pai guarda com tanto orgulho!
    – Essa mesma! Sabes, é a única fotografia que tenho até esta idade em que estou aqui, vestido, imagine-se lá…
    – De Guarda-republicano – interrompeu o filho, como se conhecesse a imagem de trás para a frente, e todas as histórias procedentes dela.
    – Fui muito feliz neste dia de Carnaval – continuou o progenitor um pouco emocionado. – Mas se julgas que esta foto é tudo o que guardo desse dia, estás enganado. Todos os momentos estão gravados na minha memória, e ela é apenas um auxiliar que me faz recordá-los como se tivessem acontecido hoje, porque os vivi intensamente. Perdemos largos minutos para pousar para aquela máquina primitiva, mas depois o tempo foi todo nosso. Brincámos, rimos, mas principalmente sentimos. Estávamos vivos e éramos jovens! 
    » Hoje tiraste mais de trezentas fotos, que hás-de passar  para um computador. Apenas nesse momento darás um vista de olhos. Depois ficarão para sempre esquecidas as imagens que registam uma tarde num jardim maravilhoso. Um jardim onde tu não estiveste, do qual não sentiste a fragrância, onde não viste os teus filhos correrem, nem brincaste com eles, onde não me deste o prazer de uma conversa, onde não abraçaste a tua mãe nem disseste à tua mulher o quanto a amavas.

                                                                   
                                                                                                      escrito para: Fábrica de Histórias
 


6 comentários:

  1. Ao ler-te, desenhou-se na minha mente um lugar igual a esse de que falas e onde estive há uns tempos e onde vivi uma paz imensa e uma sensação muito especial porque senti cheiros da minha infância... mas estou a divagar...

    Evidencias aqui aquilo que eu sempre digo quando falo sobre fotografia, que é algo que eu adoro. A era digital retirou, a meu ver, à fotografia, toda a magia. Sabes, aquela sensação de ansiedade de se saber, e ter de esperar para ver, se aquela fotografia ficou bonita, se bem tirada, etc... A revelação, o colocar nos álbuns, enfim...

    Hoje, dispara-se na máquina fotográfica à toa, passa-se para o computador e nem nos damos muitas vezes ao trabalho de eliminar as tremidas, ou até repetidas, com a agravante que por vezes nem nos lembramos já do "objecto" fotografado.

    O preço da modernização...

    Um beijinho, os teus posts têm sempre de forma mais ou menos subliminar, uma mensagem pertinente, obrigada por isso.

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  2. Pois... tens esta forma de escrever que nos prende até à última palavra.
    Abraço

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  3. Upss... falhou qualquer coisa ali na ónix...sorry.

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  4. Olá Natacha! Podes crer, a fotografia tem perdido toda a sua magia e eu aproveitei para relatar isso mesmo neste texto. O Ser Humano e a sua mania de evoluir, de modernizar excessivamente, de mexer no que já está perfeito! São grandes passos para a Humanidade, mas também grandes passos que nos distanciam do verdadeiro sabor das coisas.

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  5. Estava eu a pensar quem seria a «ó»?!!! Afinal eras tu Ónix :) Obrigado pela visita!

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  6. Subscrevo a Natacha..
    Infelizmente, a verdadeira beleza dos momentos captados perde-se com o que se pode fazer das fotografias, isto falando de alterações a todos os níveis.. e é de lamentar porque, a meu ver, há evoluções que acabaram com a genuinidade das coisas..
    Adorei a tua história.. faz-nos pensar seriamente nas coisas boas que se perderam.. mas que ainda se imortalizam na nossa memória..

    Um beijinho :)

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