Sou feliz em memórias que se libertam em voos rasantes sobre extensos campos de alfazema, no tempo em que a vida era colorida, tinha aroma e sabor, e eu corria descalço, com a liberdade despreocupada de quem, da vida nada sabe Mas as crianças querem crescer depressa, para chegarem a adultos e protestarem que afinal esse processo não devia ter sido assim tão rápido. Sem que dessa conta, os meus cabelos perderam a cor, o passo tornou-se lento e o pensamento é apenas um olhar num espelho enviusado, que só reflecte a estrada que ficou para trás. Afinal, o que sobrou de uma vida? Do que me rodeia, apenas este quarto frio e escuro, um telefone que não toca, uma porta que ninguém ousa bater e em frente, a parede que um dia foi branca, onde a minha sombra, viciada dança ao compasso frenético desta cadeira de baloiço onde me sento. De mim, sobraram memórias.
(palavras para uma imagem) |
Acendo uma vela para que se liberte no espaço a fragrância da alfazema, acendo outra e espreguiça-se delicadamente abrindo os olhos, aquele menino que vive em mim, acendo outra e outra e outra e outra, e surgem os sorrisos, os beijos, surgem as fantasias e as descobertas, acendo uma última vela, fecho os olhos e transporto-me no tempo:
Cresci num extremo de uma pequena povoação do sul de França, numa casa isolada de todas as outras. É certo que nenhum rio passava perto, mas em compensação, ao abrir uma janela ou uma porta, havia um imenso oceano, de uma cor púrpura suavemente esbatida, que nos invadia os sentidos, alagando tudo e todos de uma calma sagrada. Tudo o que a vista conseguia alcançar, eram hectares cultivados de alfazema que faziam lembrar uma tela a óleo que com arte divina e a ajuda preciosa do meu pai, a Natureza, de lilás, tão bem pintou. Cuidava de cada planta como de um filho e no fim do dia, enquanto o Sol se ia despedindo lentamente, sentava-se transpirado de orgulho sob o alpendre, idolatrando a obra até que caísse a noite ou então que a minha mãe chamasse para jantar. Muitas vezes me disse, «filho, tudo o que sei cabe dentro de um frasco». Era um homem humilde e de facto não sabia muito de pessoas nem de onde as ambições as podem levar, desconhecia o pecado e desacreditava na maldade, nunca se interessou por engenhos sofisticados, nunca leu um livro, mas quando o tema era perfumes e essências, dominava o assunto como ninguém, com a mestria herdada de antepassados, que se foi enaltecendo e aprimorando ao atravessar de cada geração. Quando os campos floresciam, aquele aroma magnífico tornava-se mais intenso e conseguir senti-lo do cume da montanha era sinal que havia chegado o momento exacto da poda, então nos dias seguintes, o meu pai energicamente, cortava somente as flores e iniciava o processo demorado da destilação; o que resultava dele, era colocado em pequenos frascos de vidro que mais tarde, o proprietário de uma conceituada empresa de perfumes situada em Paris, vinha buscar. Para o meu pai, era uma altura de plena satisfação, não só por sentir que havia sido cumprida e com sucesso, a sua tarefa, mas também por saber que toda a sua arte e dedicação humedeciam agora, entranhando os poros da pele suave de uma qualquer elegante Mulher, em um qualquer canto da Europa.
Todos esses campos lilases, foram o mais bonito que os meus olhos alguma vez viram, foram a enternecedora melodia de fundo que me acompanhou e viu fazer-me «gente grande», mas para que a minha juventude fosse uma canção, a canção perfeita, faltava-lhe um poema, e este a seu tempo chegou, em forma aprimorada de estátua esculpida por Rodin e de jeito carismático de menina envergonhada.
Claire e eu tínhamos a mesma idade, morávamos perto, mas nunca lhe tinha prestado atenção, até àquele final de tarde em que ela resolveu vir espreitar; aproximou-se por entre a vegetação, como se ninguém a visse, gatinhando num selvagem e felino porte onde a curiosidade transcendia o receio e os seus cabelos negros e longos, bonitos por não serem cuidados, a denunciavam num contraste delicado, com o lilás da alfazema. Quando percebeu que eu a via, levantou-se e esfumou-se numa corrida assustada. O quadro a óleo estava então completo, a melodia encontrara o seu poema e a canção nascia. Voltou nos dias seguintes e em cada vez foi perdendo o medo e aproximando-se um pouco mais, até que já ninguém estranhava a presença de ninguém. Não me lembro quando foi a primeira vez que falámos, nem o que dissemos, mas sei que em pouco tempo éramos os melhores amigos. Na realidade, Claire não era de muitas conversas, mas também, quem precisa das palavras quando tem uns olhos enormes, ansiosamente atentos, que transbordam vivacidade, e um movimento que é arte? Foram dois, três anos, os melhores da minha vida, aqueles em que fomos marinheiros daquele Mar lilás, sempre em busca de ilhas perdidas e aventuras de descoberta, onde os sentidos eram a bússola da razão. Ali descobri o sabor molhado de uma boca… Ali entregámos o nosso corpo pela primeira vez e hoje se pudesse, trocava os dias que me restam por meia hora daquela tarde. Claire arrancou velozmente olhando para trás e rindo numa espécie de provocação, disparei atrás dela, não tão depressa que lhe conseguisse deitar a mão, não tão devagar, que a minha vista pudesse perder o alcance do gentil rabear do seu quadril. Agarrei-a quando o meu corpo precisou sentir o dela, e caímos rebolando numa espécie de luta fantasiada, em que eu fazia de predador e Claire de presa que se debatia com uma bravura lasciva. Envolvemo-nos em beijos, daqueles em que duas almas ganham a capacidade de se fundirem e o redor se torna fosco; inexperientemente sem saber o quê nem como, arrancámos a pouca roupa do corpo e deixámos que o instinto nos mostrasse o caminho…
(imagem para as minhas palavras) |
Os meses seguintes foram deslumbrantes e nós, vivendo em êxtase profundo nem demos significado às visitas consecutivas de uns homens que usavam gravata e que tinham um ar importante. Em pouco tempo, eu e os meus pais estávamos a viver numa cidade grande, as outras pessoas da aldeia em outro lado qualquer. Soube depois que aqueles homens que se julgavam donos do Mundo, tinham vindo negociar a nossa expropriação. Em breve, os campos de alfazema desapareceriam e no lugar deles surgiria uma auto-estrada manchando a paisagem.
O livro de memórias encerra aqui um capítulo, não voltei a ver Claire, mas onde quer que ela esteja, sabe que correremos para sempre juntos nos campos de alfazema… Depois dela, encontrei de novo o amor, perdi-o, reencontrei-o, uma e outra vez, mas nunca ele, voltou a ter aquele aroma.
imaginado e escrito para: Fábrica de Histórias