«Um homem está não onde mora, mas onde ama.» (ditado italiano)



     Ajene chegara ao Brasil, num desses navios negreiros, que transportavam Homens apelidados de escravos. Chegavam às centenas, em condições desumanas, amontoados num porão de um navio como se fossem mercadoria, deixando para trás uma África que os viu nascer. Eram arrancados das suas vidas, assim como das famílias, para sempre, uns capturados violentamente, outros traídos pelos seus próprios líderes, que ausentes de escrúpulos, os trocavam por objectos e bens de baixo valor.

   Longos anos se passaram desde a sua chegada à propriedade, mas todos se lembram desse dia como se fosse hoje. Ajene era jovem e robusto, tinha a força de um búfalo e a coragem de um leão, e não se conseguia entender se os seus olhos brilhavam porque ainda havia esperança no seu peito, ou se por ingenuidade pura de quem acredita que tudo não passava de um pesadelo, mas talvez, quem sabe se no dia seguinte não acordaria confortado nos braços da mulher que ama e que, grávida deixou em África.

  Todos perceberam estar diante de alguém especial. Os escravos acatavam as suas ideias e depressa se tornou um líder, conquistando o respeito de todos, mesmo dos homens brancos, que o viam como um elo que os ligava e facilitava o trato com os outros negros, harmonizando um pouco o ambiente pesado do engenho e tornando-o mais produtivo.

   Ajene nos primeiros anos tinha um aspecto saudável e um ar feliz. Quando dele, as pessoas se aproximavam com problemas ou dúvidas, da sua boca saíam sempre palavras sábias e bons conselhos, com uma força capaz de acalentar a esperança, até dos mais perdidos. 
  Os mais velhos – para quem tinha sempre um sorriso – viam em Ajene a sua própria esperança, a força de espírito e a coragem que já não tinham.

  Trabalhava do nascer ao pôr-do-sol na extracção de cana-de-açúcar e muitas vezes, ultrapassando o seu esforço, fazia o trabalho dos mais fracos para que estes não sofressem represálias. À noite, quando a maioria recolhia para dormir, Ajene ficava ao relento, olhando as estrelas e sonhando com uma imaginação inocente de criança e o coração intenso de quem ama. Na sua mente passavam imagens sucessivas do seu filho brincando e enchendo de vida e alegria, a sua aldeia. Como devia estar crescido o filho que não vira sequer nascer! Já devia estar um homem, ou quem sabe uma mulher, nem isso sabia. 


  Por vezes fechava os olhos e conseguia sentir o odor quente da sua mulher, e as suas delicadas mãos afagando-lhe o corpo suado de um dia de trabalho duro, amenizando a dor dos seus músculos. A noite passava e a manhã trazia-lhe um sorriso que lhe dava força e mantinha a esperança que o fazia acreditar que um dia a escravatura teria fim, que um dia iria regressar àquela aldeia do outro lado do oceano e poderia abraçar finalmente aqueles que o mantinham vivo à tantos anos…

   …Mas um dia, muitos anos depois, chegou à propriedade um novo grupo de escravos. Nele vinha um velho amigo de Ajene, tinham crescido juntos em África, na mesma aldeia e partilhavam imensas e intensas memórias de criança; a saudade era tanta que os uniu num abraço prolongado onde o tempo se esquece de passar.

   - Mas diz-me, conta-me como ficaram as coisas na aldeia! – foi a primeira frase de Ajene, depois dispararam as perguntas. – Como é o meu filho, é um rapaz? Já sou avô?

  A ansiedade de Ajene estava incontrolável e o seu olhar saltitava num sufoco desmedido, mas cabia ao seu velho amigo, a desoladora tarefa de mensageiro do infortúnio, este baixou a cabeça quando as lágrimas lhe escorreram na face e proferiu numa voz grave mas doce:
    - Senta-te. Há coisas que precisas saber.
  » Poucos dias depois de te terem levado, voltaram mais brancos à sanzala. Eram muitos e depressa nos prenderam a todos. Os que serviam para trabalhar foram acorrentados e levados para o navio, todos aqueles que a sua condição provavelmente nem lhes permitiria aguentar a viagem, foram mortos ali mesmo. O teu filho não chegou a nascer…

    Foi naquele instante que o chão fugiu debaixo dos pés de Ajene, e nem uma pedra arremessada direito à sua nuca lhe teria feito mais estragos. Foi a queda de um sonho num eclodir de desilusão e nada na vida dói mais que o perder da esperança. Tudo em que tinha acreditado naqueles anos, não passava de uma mentira.

  A sua alma morreu naquele instante e até que sucedesse o mesmo ao seu corpo foram necessários apenas alguns meses. Ajene definhou dia para dia, tornou-se velho e cansado num piscar de olhos, a sua barba e o cabelo cresceram, e com eles, uma tristeza penetrante capaz de matar; a sua voz foi diminuindo gradualmente, até que um dia se calou para sempre num silêncio profundo.

   Os tambores tocaram três dias e três noites em festa, os choros aflitivos dos negros entoaram enlouquecidamente. Ajene foi cremado precisamente um ano antes de ter sido assinada a lei que abolia a escravatura, no dia 13 de Maio de 1888.

  "Um homem está não onde mora, mas onde ama" e viverá sempre enquanto tiver fé e acreditar, enquanto em qualquer parte do Mundo, perdido existir, um pedaço do seu coração.


    Quantos de nós já não fomos, em alguma fase da vida, em qualquer momento específico que seja, «escravos» de uma determinada situação, de um compromisso, de uma obrigação, de um amor, de uma ambição pessoal?

   Todos já tivemos o corpo num sítio e o coração em outro.



Notas:
Ajene: Nome próprio africano, masculino. Significado: Verdade


Engenho: Neste caso era o nome pelo qual eram conhecidas num todo,


 as propriedades de exploração da cana-de-açúcar, e fabricação do mesmo.


Sanzala: Povoação.
    


                                                                  escrito para: Fábrica de Histórias


9 comentários:

  1. uma historia comovente ,q retrata bem o qto a esperanca e importante ,o qto o amor pode manter vivo um homem! quem a perde ,definha ,morre!!!

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  2. Adorei!A escrita é envolvente e faz-nos viajar até ao local de acção - e isso é muito importante. Parabéns!

    Todos já fomos, em algum momento, escravos de uma situação. Porém hoje já não estamos dependentes de uma qualquer carta de alforria, não passemos o ónus da responsabilidade para terceiros, falta-nos crescer, ter coragem e sobretudo, não termos medo de ser felizes.

    No dia em que conseguirmos juntar no mesmo espaço o nosso corpo e o nosso coração, entenderemos isto e vamos perceber, não sem mágoa, o tempo que perdemos...

    Felicidades para ti...

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  3. Triste, mas belo.

    A Esperança é mesmo a centelha da Vida... por isso é que não a podemos perder nunca!

    É sempre bom ler os teus escritos na Fábrica de Histórias. :-)

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  4. Antes de publicares o teu blogue,disse-te que já era mais que altura de divulgares a tua escrita e tinha razão.Todos os teus textos são ricos em palavras e especialmente em emoções, fazem-me arrepiar e conseguem-me levar a entrar nas histórias e vivê-las com intensidade.

    Choro quando o momento é triste (neste caso quando o Ajene,perdeu a única coisa que o fazia resistir dia-pós-dia.A esperança de um dia voltar a ver a sua Mulher e o seu/sua filho/a ,e sorrio quando o momento é feliz.

    Tudo isto porque escreves com o coração.
    Quando se faz aquilo que se gosta,sobressai-se sempre e tu meu amor,estás num bom caminho.

    Desejo-te muita Sorte e muitas Felicidades no teu trajecto e para toda a tua vida.

    És a luz da minha vida e estou muito orgulhosa por ter um HOMEM como tu do meu lado.
    Beijo meu e da Dominó...

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  5. Obrigado a todos os que me lêem, um obrigadoooooooooooooooooo mais prolongado aos que deixaram aqui a sua opinião:

    • Foi precisamente o que tentei retratar, a importância do Amor e de acreditar, o verdadeiro significado de viver. Fico feliz por ter conseguido.


    • Para quem escreve, transportar quem lê para o local de acção é o maior desafio. Nos dias que correm ainda existem pessoas levadas por ilusão ou necessidade, para locais ermos e obrigadas a trabalhar sem remuneração, nem condições. Pura escravatura, e sem carta de alforria. Mas falando das «escravidões» pessoais, torna-se mais complicado, cada um terá o seu ponto de vista e as suas próprias razões.


    • Aqui deixo mais um ditado, «a esperança é a última a morrer». : ) Tentarei continuar a escrever na Fábrica de Histórias, não só por prazer pessoal, mas também como forma de incentivo para as outras pessoas que escrevem, afinal quantos mais formos, melhor!


    • Dina! Tu és suspeita! : )

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  6. continua a escrever sim...a tua escrita e profunda e admiravel!!!

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  7. temos q acreditar q a esperanca e a ultuma a morrer... cabe a cada um de nos nao a deixar morrer!!!

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  8. Cláudio:
    As mulheres são muito sábias!
    Ainda bem que deste ouvidos à tua Dina! :-)

    Dina:
    BOA!

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  9. Ajene = Verdade..."Um homem está não onde mora, mas onde ama"...Verdade...A mais pura verdade...Quando ele ama algo ou alguém, a sua alma está neste amor e por ele vive, até que a sua alma saia do seu corpo, ultrapassando as barreiras do estar e entrar no mundo do ser, do ser AMADO.

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