A vizinha do 2ºdto é uma bruxa


 Atitude amarga, a que os humanos têm em julgar e condenar aqueles que são diferentes. Receiam o que desconhecem e tal como um cão atemorizado, atacam ao mínimo sinal de medo, mas entre esse impulso e a indiferença, existe sempre a curiosidade, que tem a capacidade de fazer quebrar regras e disformar ideias antes concebidas como quem troca uma camisa, deixando a jeito a própria personalidade, tão vulnerável e apetecível a possíveis estragos que as contradições podem causar. Era uma confusão assim que estava instalada no prédio de doze andares onde vivo – onde os inquilinos, numa maioria sexagenários e pouco ocupados, se juntavam em protestos envergonhados e julgamentos populares de vão de escada – desde que Sofia tinha vindo habitar o 2º direito, à seis meses atrás.
  Diziam que era bruxa! Uns temiam por algo que não sabiam explicar muito bem, talvez uma espécie de energia negativa que se instalara, outros comentavam que o edifício agora era muito menos seguro, já que era um entra e sai de gente estranha que se dirigia ali a fim de obter uma consulta.

 Houve um domingo que ganhei coragem, desci no elevador até ao 2ºandar e bati na porta de Sofia. Esperei algum tempo sem insistir e quando me preparava para apanhar de novo o elevador para cima, a porta abriu.
   - Entre, não vá alguém vê-lo por aqui! – exclamou Sofia numa voz firme.
   - Porquê, haverá problema se alguém me vir? – perguntei ao entrar.
   - Estou a zelar pelos seus interesses! Deve ser o último vizinho que faltava vir a minha casa, e como os outros todos me pediram sigilo, julguei que fosse o seu desejo também.

   Engraçado, as pessoas que pediam sigilo eram as mesmas que entoavam aquele burburinho diário e exaustivo que se ouvia pelo prédio e me cansava a cabeça. São as tais mossas na personalidade e a curiosidade invencível que falei há instantes, mas se cada um acha que o importante é ocupar a qualquer custo, as suas vidas fúteis, quem sou eu para dizer o contrário?

   Apresentámo-nos formalmente e por instantes, o meu olhar vagueou no espaço que nos rodeava, parecia estar na minha casa, mas com uma decoração mais arrojada. Depois, fixei Sofia, enquanto esta, sentada em frente a uma pequena mesa, misturava as cartas de um baralho. Todas as bruxas que viviam no meu imaginário eram velhas e feias, tinham uma verruga no nariz e o queixo arqueado, mas agora estava diante de uma mulher que era precisamente o oposto.

   - Tem uma dúvida que o atormenta e quer que lhe revele a decisão mais acertada, correcto? – perguntou Sofia enquanto dispôs na mesa cinco cartas, em forma de cruz.

   Era um facto, tinha recebido uma proposta de emprego que me oferecia condições excelentes e uma remuneração tentadora, mas havia um peso forte no outro prato da balança, tinha de rescindir com a empresa onde trabalhava actualmente e seria sempre uma incógnita, trocar o seguro pelo desconhecido.

    - Pois as cartas dizem que deve arriscar! Que vai ter sorte na sua decisão. – disse-me como se tivesse conhecimento exacto do que se passava na minha vida.

  Levantou-se repentinamente e de certa forma despediu-se de mim. Agradeci-lhe e fui-me embora. 

 Uns dias depois de ter começado no meu novo emprego, organizei um jantar em casa, convidei alguns amigos e claro, a responsável que de certa forma deu confiança à minha decisão. Sofia apareceu, elegante como sempre, emanando um charme aprazível que por um lado a torna uma mulher muito atraente e segura, mas por outro, coexiste com uma barreira invisível, que impossibilita quem quer que seja de se aproximar do seu íntimo. É mais ou menos uma pessoa apetecível, mas intocável, no entanto é bastante social, e todos os convidados simpatizaram bastante com ela, não sei se por gostarem, se por a temerem. 

  Foi sem dúvida o centro das atenções nessa noite e falou-nos, entre outras coisas, como era gratificante ajudar as pessoas no percurso difícil que é a vida, e que muitos a procuravam quando não tinham encontrado solução em mais lado nenhum.

  Aquela mulher cativava-me, tinha um olhar profundo que me invadia e despia a alma por completo. Construímos uma amizade gradualmente, bem alicerçada e com base no respeito, ausente de interesses de qualquer espécie. Foi uma conquista lenta da minha parte descortinar a capa dura que afinal escondia um ser tão sensível e frágil, mas no fundo gratificante porque Sofia, por dentro é ainda mais bela. Jantamos muitas vezes juntos, de cada vez provamos um vinho diferente, e as conversas… Essas são sempre como uma brisa suave que o prazer ventila e as emoções inalam.

 - Não devias acreditar em tudo o que te dizem. As cartas…

 - Como assim? – interrompi.

 - As cartas não dão respostas. Elas só nos dizem aquilo que na realidade nós queremos que elas nos digam. Quando as deito sobre a mesa, já sei antemão o que vou falar. Vou dizer exactamente o que a pessoa que está à minha frente precisa ouvir. 

  - Então como sabias naquele dia, que eu tinha uma dúvida?

  - Toda a gente tem sempre uma dúvida.

  - Não achas que foi arriscado teres-me dito para seguir em frente?

  - Não estás contente com o teu novo emprego? A vida é feita de riscos e uma mudança é sempre uma vitória. O que fiz foi dar-te coragem para decidires sem medo, no fundo fazer despertar em ti a tua maior arma, a força daquilo em que acreditas.
  » Muita gente que me procura, vem em desespero, não têm mais onde se agarrar. Contam-me a vida toda e o que as atormenta e só por isso se sentem mais leves e voltam. Às vezes basta um elogio, uma palavra de conforto ou de amizade para que se rasgue um sorriso nos seus rostos, tudo o que não têm no seu quotidiano. O que lhes dou é coragem, faço despertar nelas o seu maior poder, o poder de acreditar e querer muito uma coisa.

   -Então não és uma bruxa de verdade? – perguntei em tom de brincadeira.

   - Claro que sim! Afinal sou uma Mulher!

  Vive uma «bruxa» dentro de cada Mulher, é o lado mais secreto e mágico da sua natureza. As mulheres têm uma alma sensível e uma força que não esgota. O poder da fertilidade e da intuição está manifestamente presente na sua essência.


                                                       escrito para: Fábrica de Histórias



10 comentários:

  1. Olá Cláudio,

    Deixas-nos em suspense até à última, e quando pensamos que esta semana não ias participar, eis que nos presenteias com mais uma fantástica história :)

    Adorei! Obrigada e um beijinho para ti :)

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  2. Muito bonito e com um final feliz!
    E adorei a frase de "conclusão" - assino por baixo!
    Aquilo que as pessoas consideram "agoirar" ou "vaticinar" não é mais que a nossa sensibilidade a vir ao de cima e, nisso, todas as Mulheres são Bruxas mesmo... ;-)

    Boa semana Cláudio!

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  3. Uma belíssima história, muitíssimo bem escrita e acompanhada por uma lição de vida que todos devíamos interiorizar. Sabes, é triste vivermos numa sociedade assim... condena sem medir as consequências.
    Adorei. Parabéns. Continua a escrever assim.

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  4. Maravilhosa história, escrita de uma forma intensa e imensamente bela..
    Descreves na perfeição o mundo mesquinho em que vivemos, bem como o ensinamento de que ainda existem pessoas íntegras e sensíveis..
    Quanto às mulheres.. há umas que são verdadeiras bruxas más, outras que são boas em demasia e possuem aquele sexto sentido..
    Agora peço-te eu.. nunca pares de escrever, de forma a nos proporcionares momentos assim..

    Beijinho

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  5. Gostei muito da tua Sofia! E gostei essencialmente da conclusão. Gostei mesmo, mesmo:)

    Um beijinho
    Cláudia
    (magnólia)

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  6. Vou responder a todos os que aqui comentaram, de uma forma generalizada, calhou serem apenas pessoas da Fábrica de Histórias, é mesmo a essas pessoas que ali encontrei que quero neste momento dar a minha atenção. Quero agradecer a todos sem excepção, a forma carinhosa com qual fui sempre tratado, e as palavras de incentivo que têm sido mais que muitas e que me têm feito, pelo menos, querer escrever. E mesmo quando não me surgiram ideias ou o tempo não colaborava, fi-lo, inventando maneira, por achar que uma participação a mais pode ser também um incentivo para os outros que ali escrevem. Sinto-me bem onde o respeito e o afecto são prioridades, onde a competição não existe e onde o prazer de ler e escrever é uma partilha unânime.
    A todos, o meu sincero MUITO OBRIGADO.

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  7. De nada!!! :-)

    Mas a verdade é que isto não é algo completamente altruísta: nós gostamos de ler coisas boas, por isso não queremos que pares! ;-)

    Vai já preparando o P.S., que a gente está à espera!

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  8. SDaVeiga: E como posso resistir a comentários assim?!!!,tenho mesmo de escrever!
    O P.S. ainda não saiu, mas agora no final de semana, com mais disponibilidade, sairá certamente.(acho eu)

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  9. Olá Cláudio!
    Vim parar aqui no seu cantinho meio que por acaso e, inesperadamente, estou encantada! Pouquíssimas vezes pude me ver em outro blog, como é o caso do seu.
    Vou acompanhá-lo sempre e agradeço pela oportunidade de poder compartilhar um pouquinho de tamanha sensibilidade!
    Um grande abraço!
    Déia

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  10. Olá Déia! É assim quando tudo acontece meio por acaso, que a surpresa se torna grande. Foi isso que senti com a tua visita. Que bom que te revês nas minhas palavras, é sinal que a tua sensibilidade se aproxima da minha, então eu é que agradeço. Um abraço e volta sempre.

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