Próxima estação - Esperança


       Este texto começou por ser escrito na terceira pessoa, depois quis aprofundar e descrever sentimentos e fluiu na primeira. Espero que se entenda.

   Fazia algum tempo que Lúcio trabalhava em Lisboa e a viagem que o trazia de regresso a casa, era sempre igual. Subia naquele comboio na primeira estação, procurava um lugar vazio e sentava-se, preparando-se numa espécie de rito mental que resultaria numa serenidade ambígua, promissora de fazer suportar os quarenta minutos seguintes da sua existência, onde alguns pensamentos de intolerância e uma certa frustração aproveitavam para lhe bombardear o cérebro. Considerava tempo desperdiçado, aquele em que se sentia terrivelmente incómodo, enquanto permanecia sentado num dos bancos, forrados de um tecido já gasto, que compunham aquela carruagem que parecia ter sido idealizada para gente pequena. Encolhia ao máximo as suas pernas para não tocar em ninguém, ao mesmo tempo que evitava cruzar o olhar com os seus companheiros, «estranhos» em todos os sentidos que a palavra pode ter. Pedia para chegar o mais depressa possível ao seu destino, e aliviava toda a sua tensão num pequeno suspiro que soltava, quando sentia o maquinista abrandar a marcha da comprida e velha besta de ferro e lá fora se podia ler «Sintra», na primeira placa que surgia.
   Trabalhava numa agência de viagens, «vendia sonhos», como gostava de mencionar com um sorriso dissoluto, quando alguém lhe perguntava o que fazia na vida. Fora do emprego, vivia o seu próprio e típico «sonho americano», onde não falta uma casa grande e um jardim. Crianças correndo na relva e um cão tolo no seu encalço enquanto estropia todas as flores que lhe surgem no caminho. Há uma mulher bonita e eficaz, que se apressa todos os dias a abrir-lhe a porta com um sorriso rasgado, repleto de uma ternura saudosa e convicta lhe diz que o ama. Talvez já não seja tão bonita assim, mas a sua dedicação sobrepõe todos os factos e senão se aprimorou com o passar dos anos, pelo menos mantém-se inalterável. É tudo tão irrepreensível que se torna lógico e o Homem é suficientemente imperfeito para conviver de bom agrado e gerir bem a perfeição, beliscando a tolerância suportável à condição Humana, na escala da monotonia. De certa forma era feliz, mas por outro lado sentia-se incompleto.





   Quando ela apareceu pela primeira vez na minha vida, estava sentado no banco de veludo desbotado, esperando que o comboio iniciasse a qualquer instante a sua marcha de rotina. As minhas indecisões iam surgindo um pouco antes de entrar no túnel que separa as duas primeiras estações. Comparo-o por vezes com a vida. Escuro, com sons metálicos que atormentam, tão mecânicos, de aço ferindo aço à medida que a locomotiva rasga o vazio profundo, puxando atreladas de medos, as carruagens que parecem não ter fim. 

   «Com licença», disse. De seguida sentou-se no lugar vazio diante de mim, cruzou as pernas com delicadeza e abriu um livro de uma edição muito antiga. Reconheci-o de imediato, The World as Will and Representation. Era bela, não sei o quanto, não me recordo sequer das formas ou da cor do seu cabelo. Chego até a pensar que nunca a vi, eu apenas a senti. Possuía segurança nos seus gestos, ao mesmo tempo que uma rebeldia que lhe era intrínseca à personalidade se mostrava domada por uma espécie de autocontrolo. Umas vezes o nariz parecia empinar e a sobrancelha chegava mesmo a franzir em arco. Noutras, propagava no ar a sua doçura, como um pólen intacto que a brisa se encarrega de espalhar, avultando o desejo de bem-estar das pessoas que rodeiam. Amei-a desde o primeiro instante. Amei-a além da carne. Nunca imaginei os nossos corpos despidos, lançados sobre um tapete vermelho, onde as minhas mãos ávidas percorriam a sua pele branca e os lábios grossos escorrendo água, se perdiam nos seus seios. Em vez disso, o pensamento fechava-se como se fossem olhos e deitava-me no seu colo. Sentia as suas mãos acariciarem-me o cabelo, alimentando o tacto de quem precisa sentir, e numa voz que mais ninguém consegue ouvir, contava-me histórias e aventuras de uma forma característica, capaz de me fazer atravessar a porta que se abre à fantasia, levando na mão esquerda um bilhete só de ida, na outra mão, uma mala de viagem com pertences essenciais. Sentimentos e emoções são o que é verdadeiramente meu, e tudo o que preciso.

   Levantou-se para sair algumas paragens antes da minha. Não a segui com o olhar, não faz parte de mim olhar nas costas de uma mulher. Prefiro contemplar de frente, admirar nos olhos, onde sei que vou encontrar a verdade, a única beleza que me importa.

   Nessa noite li algumas coisas de Arthur Schoppenhauer. Não conseguia dormir e de certa forma sabia que assim estaria ligado àquela mulher que possuía uma audácia capaz de me roubar o sono. Quem sabe até teria um tema comum para poder quebrar o gelo e dirigir-lhe a palavra, se algum dia se voltasse a sentar em frente a mim.

   No dia seguinte, apressei-me ao sair do emprego, para tentar apanhar o comboio à mesma hora. Sentei-me, mas sentia-me agitado e o meu olhar disparava em todas as direcções à medida que as pessoas iam chegando e ordenadamente ocupavam os seus lugares. Depressa aquele espaço se preencheu de gente. A cadeira em frente manteve-se vazia. O comboio arrancou, mas a minha esperança permaneceu na plataforma que lentamente foi ficando para trás, cada vez mais pequena até se perder de vista completamente. Recostei-me, pendi a cabeça sobre o vidro da janela e por ter espaço, pude esticar ligeiramente as pernas. Tentei adormecer, mas poucos segundos depois sou despertado por uma voz que parecia ter feito sempre parte da minha existência. Era ela. Pediu licença e sentou-se. Abriu o mesmo livro e sorriu sem me dirigir o olhar, talvez lhe passasse na cabeça o mesmo que na minha, quem sabe um «dejá vu». O meu coração batia acelerado, sem qualquer noção de ritmo e tudo parecia tão mágico. O lugar que se manteve vazio, embora houvesse gente de pé, parecia ter esperado unicamente a sua presença. Aquele tinha sido o momento exacto de lhe proferir uma das frases que me ficaram na memória, na noite anterior. «O destino baralha as cartas e nós jogamos», ou então, «a Mulher é um efeito deslumbrante da Natureza». Não fui capaz e talvez não serei mais. O meu impulso manteve-se controlado e mudo, com receio de parecer ridículo e possivelmente ela não me iria entender. Quem sabe, as pessoas que faziam parte daquele cenário me julgassem como um predador engraçadinho, exibindo as garras frente à sua próxima refeição. Limitei-me a fechar os olhos e a imaginar-me no seu colo uma vez mais, enquanto a alma se enaltece com o escutar da sua melífera voz, partilhando fantasias.

   Nem sei o seu nome, mas que me importa? Será apenas um nome igual ao de tanta gente. Baptizei-a então com o sentido que tem para mim. Chamei-a de «Noite», por ser envolvente e misteriosa, apaixonante como a noite sempre foi para mim. Aquela que chega, me acolhe nos braços e embala, depois parte, para que o dia possa nascer com mais luz e cor. Aquela Mulher acelerou o relógio, encurtando os quarenta minutos diários da viagem de regresso, onde antes os medos incompreendidos abusavam continuamente da minha solidão, no meio de um mar de gente. Sem querer ou se aperceber sequer, tornou muito mais apetecível a minha outra «grande viagem», pintou nela algum sentido. Quase todos os dias a vejo, senta-se o mais perto de mim que consegue. Por vezes trocamos um olhar invasor, nada mais que isso. O resto é a imaginação que levanta o pano, representa, diverte-se e aplaude de pé. Queria tanto dizer-lhe que a amo, e que esse amor é puro, agradecer-lhe por me ter mostrado que a vida vale ainda e sempre a pena.

   Quando duas pessoas se olham assim, é mais que uma coincidência. É um encontro que estava marcado desde sempre, onde o destino preparou o momento para que pudessem partilhar algo entre si e crescerem um pouco. Uma chave-código que precisa ser trocada, permitindo abrir mais uma porta do labirinto e seguir em frente. Mas o Mundo está deturpado, recheado de conceitos preconcebidos que nos fazem temer e desconfiar incessantemente, achando que o belo esconde algum interesse, quase sempre físico. E mesmo quando esse prazer da carne acontece, e é tão substancial, é apenas a parte terrestre fundindo-se no divino. Não são mais que umas pernas cansadas se arrastando, na procura do caminho que as leve de volta a casa, porque somos metade Homem, mas metade é Anjo que um dia trocou as asas pela dor de ter um corpo.




                                   «A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais.»
   

20 comentários:

  1. exclarece-m so uma duvida.. o dia de anos e de mim ou desse estranhu??

    e a historia deve ser contada como se fosse a narrar como se fosse esse estranhu ou um narrador a parte??

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  2. Sim, tu és a narradora! Se for um desafio muito complicado, dizes-me e eu coloco outro ;)

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  3. Confesso já ter lido este teu texto no mínimo 10 vezes :). Senti-me dentro desse mesmo comboio, vivi as emoções que descreves e que me parece conhecer tão bem, tão de dentro delas. Como também já em anteriores comentários falamos, quando um escritor consegue levar quem o lê ao palco da narrativa, então é como que um aplauso de pé, durante uma meia-hora, interrompida apenas quando a adrenalina nos faz levar lançar no ar um assobio em forma de incentivo!
    Não sei se diga primeiro: Parabéns! Ou então: Obrigada! No entanto parece-me que a ordem dos factores é mesmo arbitrária neste caso, portanto escolhes tu, quando me leres, qual a sensação que queres sentir primeiro (sorrisos).
    Achei excelente o facto de teres virado o texto no sentido da primeira pessoa, penso que o torna ainda mais intenso.
    Há pessoas com muita sorte e nem sequer fazem ideia. Ser-se amada assim, no interlúdio de uma vida... melhor, só mesmo fazendo parte...

    Está lindo, confesso até ter sentido a lágrima teimosa que insiste em cair e que tenho contido bastante... talvez seja esta a hora de não conter mais! (sorrisos)

    Um bom fim de semana, Cláudio... fica bem!

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  4. Não quebrar o encanto do encontro...deixar tudo como está e ter a certeza de que sempre ELA ou ELE estará lá, existirá na sua forma simples de envolver na mais pura forma da vida: o AMOR. Um texto reflexivo que nos param para pensar nos nossos amores...Bom domingo, Cláudio!

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  5. Cláudio, amores que se vive assim são como as flores que optamos por não colher para não abreviar o tempo da sua beleza!
    Pode ser também o cultivar da coisa mais bonita que temos em nós: a pureza de sentimentos. Hoje, cada vez menos gente opta por fazer escolhas assim. Todos querem , com a maior brevidade possível, colher a flor, usá-la como lhe convier, seja para colocar num vaso ou simplesmente a ter nas mãos por alguns minutos e então desfolhá-la completamente. Depois, jogam-na no primeiro latão de lixo que acham pela frente e esquecem completamente da sua beleza. Não lhe dão nem a chance de ser belas no seu envelhecer...E não falo isto somente de homens, hoje independente de sexo, já quase não se cultiva o amor, a ternura de sentimentos como os que descreves, um fantasiar do colo e não do sexo unicamente.
    É bonita a história que contas. Mais bonita ainda se torna pela riqueza dos sentimentos que expressas,pelo olhar que lanças sobre tudo. É muito bom ler-te! Mostra-me que o mundo é vasto e que,apesar de todos os dias vermos tantas gentes que parecem ter se tornado pedra, há muitas que continuam com um belo coração de carne!
    Continua,amigo. Partilha-te sempre que puderes. Sem dúvida, acrescentas-nos ternura!

    Um beijinho e boa semana

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  6. Olá Natacha, começo por agradecer a tua presença, sempre tão assídua e incentivadora. É só mais um texto, já deves ter percebido que sou um sonhador. Um sonhador e um eterno apaixonado… Eu «virei» o texto porque tive bastante dificuldade em descrever sentimentos de outra pessoa. Então encarnei no personagem que havia criado, tomei os seus sentimentos como se fossem meus; ficou bem mais simples e flui muito melhor. Depois pensei alterar a primeira parte, de acordo com a segunda, mas para quê? Sabia que as pessoas que me lêem com atenção iriam perceber e além de mais não me exigem perfeição. Afinal isto é só o meu pequeno mundo e tal como a vida, não podia ser perfeito.
    Um beijinho para ti e o desejo de uma boa semana.

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  7. Olá JDMatos. Já começa a ser um hábito ter-te por aqui, e fico muito feliz com isso. Aproveito também para te agradecer. Não me interessa ter muitas visitas, muitos seguidores... Prefiro que sejam poucos, mas que esses que aqui venham, o façam com gosto, porque na realidade gostam de ler o que escrevo e sobretudo porque me entendem. Um beijinho e obrigado por me entender sempre tão bem...

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  8. «São como as flores que optamos por não colher para não abreviar o tempo da sua beleza!»
    Pois é Ivete, nem num comentário a um simples texto, esse poeta que vive em ti, dorme :)
    São sempre bonitas as tuas palavras! Vou dar um palpite!: Talvez porque os teus sentimentos também o são;)
    Não sou de modo algum contra a evolução, mas tenho de dizer que a evolução roubou tanta coisa da vida das pessoas. Este mundo, cada vez mais acelerado não tem espaço nem tempo para sentimentos. Tudo acontece tão depressa que pela lógica devia sobrar mais tempo para os verdadeiros prazeres. Mas não! Está tudo a perder o sabor. Então te digo, no que toca a sentimentos e emoções, prefiro ser um conservador.
    Muito obrigado pela tua atenção, um abraço e continuação de boa semana.

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  9. muito obrigada pelo comentário!
    prometo voltar aqui para ler tudo com mais atenção :)*

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  10. Olá Mafalda, volta sim, terei o maior prazer em te ter aqui, neste espaço que tem como maior objectivo, a partilha de sentimentos profundos e verdadeiros, entre pessoas com a capacidade de os gerarem.

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  11. Bem. :) Antes do final do ano ou início do próximo já espero que esteja pronto! :P

    Muita obrigada pela preocupação.

    Beijinho grande *

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  12. desafio feito e publicado...

    hoje publiquei em todos os blog's s quiseres visitar i dar a tua opiniao :)

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  13. Bem, que dizer perante um texto destes? Acho que fiquei sem capacidade para comentar seja o que for, agora que acabei de te ler. Continua a escrever assim e não, não sou simpática nos meus comentários. Sou realista. Parabéns.
    Abraço

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  14. Olá Ónix, que bom ter-te por aqui :)E mesmo que não sejas apenas simpática nos teus comentários e eu acredito ;)quero dizer que o facto de expressar aqui os meus sentimentos em forma de palavras, se deve a pessoas como tu (e outras tantas), que me dão força e sobretudo coragem para isso. Senão seria como sempre fiz na vida, escrever apenas para mim... Escrever e guardar ou simplesmente jogar fora. Um abraço grande para ti e outro para a mana, de quem sinto falta.

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  15. ainda bem q consegui escrver de forma a superar o teu desafio :)

    bigada pelos outros comentarios e a força :)

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  16. De nada Ana. Continua sempre a escrever ;)

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  17. Não consigo classificar o que senti ao ler esta história. Consegui entrar e assistir de soslaio a cada descrição tua..
    Escreves de uma forma mágica..

    Um grande abraço :)

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  18. Olá Ametista! Ainda bem :) esse é o maior prazer de quem escreve… Muito obrigado! Um grande braço para ti também e tem um bom dia.

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